Detendo-se nas questões arte e artesanato, começamos a identificar o fazer que destingue cada uma delas... Que arte na realidade não se aprende. Existe dentro da arte, um elemento, o material, que é necessário por em ação, mover, para que a obra de arte se faça. O som em suas múltiplas maneiras de se manifestar, a cor, a pedra, o lápis, o papel, a tela, a espátula, são o material de arte que o ensinamento facilita muito a por em ação. Mas nos processos de movimentar o material, a arte se confunde quase inteiramente com o artesanato. Pelo menos naquilo que se aprende. Afirmemos, sem discutir por enquanto que todo o artista tem de ser ao mesmo tempo artesão. Isso parece incontestável e, na realidade, perscrutamos a existência de qualquer grande pintor, escultor, desenhista ou músico, encontramos sempre por detrás do artista, o artesão.
O artesanato, os segredos, os caprichos, as exigências do material, isso é assunto ensinável, e de ensinamento por muitas partes dogmático, a que fugir será sempre prejudicial para a obra de arte. E se um artista é verdadeiramente artista, ou seja, está consciente do seu destino e da missão que se deu para cumprir no mundo, ele chegará fatalmente àquela verdade de que, em arte, o que existe de principal é a obra de arte.
Foram os próprios filósofos escolásticos, que espantosamente foram os que mais claro afirmaram isso quando, ao porem a arte no domínio do “Fazer”, dela disseram ter “uma finalidade, regras e valores, que não são os do homem propriamente, mas da obra de arte a ser feita”. Está claro que o ser a obra de arte a finalidade mesma da arte, não exclui os caracteres e exigências humanos, individuais e sociais, do artefazer. Pois a arte continua essencialmente humana, se não pela sua finalidade, pelo menos pela sua maneira de operar.
O artesanato é uma parte da técnica da arte, a mais desprezada infelizmente, mas a técnica da arte não se resume no artesanato. O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar mas há uma parte da técnica de arte que é por assim dizer, a objetivação, a concretização de uma verdade interior do artista. Esta parte da técnica obedece segredos, caprichos imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele é, como indivíduo e como ser social. Isto não se ensina e reproduzir é imitação. Isto é o que chamamos a técnica de Rembrant, e Fra Angelico ou de Renoir, que divergem os três profundamente não apenas na concepção do quadro, mas consequentemente na técnica do fazer.
Outra manifestação da técnica é a virtuosidade, que seria do artista criador o conhecimento e prática de diversas técnicas históricas da arte, enfim, o conhecimento da técnica tradicional. Este aspecto da técnica que é, por exemplo, conhecer como os Assírios, os Gregos, Miguel Angelo ou Rodin resolveram a reprodução do cabelo na pedra ou no mármore, que é conhecer a distribuição das luzes e das sombras, dos tons frios e quentes, ou a maneira diversa de pincelar de Rafael, de um Duerer, de um El Greco ou de um Cèzanne; que é ainda conhecer a evolução histórica da cadência de dominância desde os primeiros tonalistas até os nossos dias: este aspecto da técnica a que chamamos de virtuosidade é também ensinável e muito útil. Não me parece imprescindível, porém como toda virtuosidade apresenta grandes perigos. Não só porque pode levar o artista a um tradicionalismo técnico, meramente imitativo, em que o tradicionalismo perde suas virtudes sociais para se tornar simplesmente “academismo” porque pode tornar um artista uma vítima de suas próprias habilidades, isto é , um indivíduo que nem sequer chega ao princípio estético, sempre respeitável da arte pela arte, mas que se atem em meros malabarismos de habilidades pessoais, entregue a sensualidade do aplauso ignaro.
Numa anedota espanhola, do moço poeta que, desejoso de fazer poemas sublimes, se dirigiu ao maior poeta do tempo e lhe perguntou como é que este fazia versos. E o grande poeta respondeu: No princípio do verso, põe-se a maiúscula e no fim a pontuação. “E no meio?” indagou o moço. E o grande poeta: “hay que poner talento”...
Quando falamos de pessoas, falamos de identidade, quando falamos de grupos sociais, região, comunidade, nação, temos uma cultura. A imagem inicial e básica que orienta o que é artesanal nasce no plano do fazer, dominar conhecimentos e tecnologia tendo na ação de executar com as mãos o que é mais representativo do protótipo do ser artesão, do fazer artesanato , do caracterizar o objeto artesanal.
O que importa é que o apoio das ferramentas assuma a condição de prolongamento e projeção do corpo do homem, multiplicando possibilidades nos atos de transformar e revelar nas intervenções que ele, homem, faz da natureza como indivíduo e tradutor da sua cultura. Assim, o objeto torna-se um testemunho não apenas do conhecimento técnico, mas, principalmente, da visão do mundo, de sua revelação, homem e sociedade, dialogando na tentativa de dizer quem ele é pelo que faz, significando para si e para seu grupo valores simbólicos de quem vivencia o seu modelo cultural.
Se consideramos essas questões como verdadeiras, vemos aí a total impossibilidade de estabelecer parâmetros ou comparações, nas rotuladas e chamadas qualidade do artesanato, autenticidade, rusticidade, como componentes necessários ao estabelecimento de um conceito ou conceitos que objetivem em visões externas de produções complexas que se expressam independente de teorias e críticas.
Existe ainda outra questão angustiante que diz respeito à repetição de formas ou criação, vista como novidade ou revelação. Os compromissos com a manutenção de modelos, ou com a incorporação de novos temas para construir objetos, estão além do domínio das técnicas ou das descobertas individuais. Modelo existe como marca da identidade desse momento, que o grupo realizador pode querer dar continuidade, tendo, porém, autonomia de transformar parcialmente o modelo ou até substitui-lo por outro. Observa-se ainda uma fantasia do que serve de tipo quando a cultura é vista pelo outro perpetuando aspectos formais que se enquadre no desejado conteúdo característico ou típico e é preciso ainda alertar para as implicações do comércio, do turismo , do estado, da moda, da intervenção de intelectuais, nos descobridores de típicos, ora como artesãos ora como objetos. O repetir o modelo está na utilização de uma técnica para um produto aceito e a criação, o que há dela, desponta na rebeldia desse modelo como forma transgressora da repetição. O artesanato, antes de tudo é o testemunho insofismável do complexo homem/natureza. E é por meio da cultura material que o domínio da técnica e do tipo de objeto estarão dizendo sobre o espaço de sua feitura, ora pelos aspectos físicos, ora pela própria ideologia da cultura.
Bibliografia:
ANDRADE, Mário de. O artista e o artesão. Aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, da Universidade do Distrito Federal em 1938. 16p. (Mimeogr.).
O artesanato, os segredos, os caprichos, as exigências do material, isso é assunto ensinável, e de ensinamento por muitas partes dogmático, a que fugir será sempre prejudicial para a obra de arte. E se um artista é verdadeiramente artista, ou seja, está consciente do seu destino e da missão que se deu para cumprir no mundo, ele chegará fatalmente àquela verdade de que, em arte, o que existe de principal é a obra de arte.
Foram os próprios filósofos escolásticos, que espantosamente foram os que mais claro afirmaram isso quando, ao porem a arte no domínio do “Fazer”, dela disseram ter “uma finalidade, regras e valores, que não são os do homem propriamente, mas da obra de arte a ser feita”. Está claro que o ser a obra de arte a finalidade mesma da arte, não exclui os caracteres e exigências humanos, individuais e sociais, do artefazer. Pois a arte continua essencialmente humana, se não pela sua finalidade, pelo menos pela sua maneira de operar.
O artesanato é uma parte da técnica da arte, a mais desprezada infelizmente, mas a técnica da arte não se resume no artesanato. O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar mas há uma parte da técnica de arte que é por assim dizer, a objetivação, a concretização de uma verdade interior do artista. Esta parte da técnica obedece segredos, caprichos imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele é, como indivíduo e como ser social. Isto não se ensina e reproduzir é imitação. Isto é o que chamamos a técnica de Rembrant, e Fra Angelico ou de Renoir, que divergem os três profundamente não apenas na concepção do quadro, mas consequentemente na técnica do fazer.
Outra manifestação da técnica é a virtuosidade, que seria do artista criador o conhecimento e prática de diversas técnicas históricas da arte, enfim, o conhecimento da técnica tradicional. Este aspecto da técnica que é, por exemplo, conhecer como os Assírios, os Gregos, Miguel Angelo ou Rodin resolveram a reprodução do cabelo na pedra ou no mármore, que é conhecer a distribuição das luzes e das sombras, dos tons frios e quentes, ou a maneira diversa de pincelar de Rafael, de um Duerer, de um El Greco ou de um Cèzanne; que é ainda conhecer a evolução histórica da cadência de dominância desde os primeiros tonalistas até os nossos dias: este aspecto da técnica a que chamamos de virtuosidade é também ensinável e muito útil. Não me parece imprescindível, porém como toda virtuosidade apresenta grandes perigos. Não só porque pode levar o artista a um tradicionalismo técnico, meramente imitativo, em que o tradicionalismo perde suas virtudes sociais para se tornar simplesmente “academismo” porque pode tornar um artista uma vítima de suas próprias habilidades, isto é , um indivíduo que nem sequer chega ao princípio estético, sempre respeitável da arte pela arte, mas que se atem em meros malabarismos de habilidades pessoais, entregue a sensualidade do aplauso ignaro.
Numa anedota espanhola, do moço poeta que, desejoso de fazer poemas sublimes, se dirigiu ao maior poeta do tempo e lhe perguntou como é que este fazia versos. E o grande poeta respondeu: No princípio do verso, põe-se a maiúscula e no fim a pontuação. “E no meio?” indagou o moço. E o grande poeta: “hay que poner talento”...
Quando falamos de pessoas, falamos de identidade, quando falamos de grupos sociais, região, comunidade, nação, temos uma cultura. A imagem inicial e básica que orienta o que é artesanal nasce no plano do fazer, dominar conhecimentos e tecnologia tendo na ação de executar com as mãos o que é mais representativo do protótipo do ser artesão, do fazer artesanato , do caracterizar o objeto artesanal.
O que importa é que o apoio das ferramentas assuma a condição de prolongamento e projeção do corpo do homem, multiplicando possibilidades nos atos de transformar e revelar nas intervenções que ele, homem, faz da natureza como indivíduo e tradutor da sua cultura. Assim, o objeto torna-se um testemunho não apenas do conhecimento técnico, mas, principalmente, da visão do mundo, de sua revelação, homem e sociedade, dialogando na tentativa de dizer quem ele é pelo que faz, significando para si e para seu grupo valores simbólicos de quem vivencia o seu modelo cultural.
Se consideramos essas questões como verdadeiras, vemos aí a total impossibilidade de estabelecer parâmetros ou comparações, nas rotuladas e chamadas qualidade do artesanato, autenticidade, rusticidade, como componentes necessários ao estabelecimento de um conceito ou conceitos que objetivem em visões externas de produções complexas que se expressam independente de teorias e críticas.
Existe ainda outra questão angustiante que diz respeito à repetição de formas ou criação, vista como novidade ou revelação. Os compromissos com a manutenção de modelos, ou com a incorporação de novos temas para construir objetos, estão além do domínio das técnicas ou das descobertas individuais. Modelo existe como marca da identidade desse momento, que o grupo realizador pode querer dar continuidade, tendo, porém, autonomia de transformar parcialmente o modelo ou até substitui-lo por outro. Observa-se ainda uma fantasia do que serve de tipo quando a cultura é vista pelo outro perpetuando aspectos formais que se enquadre no desejado conteúdo característico ou típico e é preciso ainda alertar para as implicações do comércio, do turismo , do estado, da moda, da intervenção de intelectuais, nos descobridores de típicos, ora como artesãos ora como objetos. O repetir o modelo está na utilização de uma técnica para um produto aceito e a criação, o que há dela, desponta na rebeldia desse modelo como forma transgressora da repetição. O artesanato, antes de tudo é o testemunho insofismável do complexo homem/natureza. E é por meio da cultura material que o domínio da técnica e do tipo de objeto estarão dizendo sobre o espaço de sua feitura, ora pelos aspectos físicos, ora pela própria ideologia da cultura.
Bibliografia:
ANDRADE, Mário de. O artista e o artesão. Aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, da Universidade do Distrito Federal em 1938. 16p. (Mimeogr.).
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